Tive uma agradável surpresa ao ler as impressões do amigo/artista Spacca sobre a FLiQ em que ele apresenta um registro de suas impressões sobre o evento e a produção artística dos autores presentes. Deixo por aqui este belo registro do simpático autor e os convido a conhecerem As Barbas do Ilustrador, onde o autor está registrando o proceso de seu mais recente trabalho, neste endereço eletrônico: http://asbarbasdoilustrador.blogspot.com/.
De Nova Olinda, CE, segui para Natal, RN, participar da FLIQ-Natal (Feira de Livros e Quadrinhos de Natal). Na foto acima, eu, Joseniz Moura, Rafa Coutinho, José Aguiar e a curadora da parte de Quadrinhos, a historiadora, roteirista, poeta e crítica de cinema, Milena Azevedo (que além de ter sido perfeita e simpaticíssima anfitriã, certamente fez muito mais pela FLIQ do que indicam suas atribuições oficiais...).
(acabo de ler a reportagem que Milena fez do primeiro dia da FLIQ, está minuciosa, irretocável. Caramba, ela não deixa escapar nada! Está no Garagem Hermética Quadrinhos. Não preciso escrever mais nada :)
Registro que a professora Alessandra Ferreira fez uma apresentação, mostrando o uso que fez do "D.João Carioca" (não a HQ, mas a série de TV produzida pelo canal Futura) na sala de aula, o que muito me honra (ela salvou minha palestra, pois meu pendrive não abriu e os livros não tinham chegado...).
O primeiro ser que vi do mundo dos quadrinhos, em Natal, era de Curitiba: José Aguiar, que já conhecia de traço e de amigo em comum, Wander Antunes. José ilustrou dois álbuns de Wander que saíram na Europa (Ernie Adams), mais uma HQ com dois velhos canalhas em traço magistral.
Opa, dois amigos em comum - André Diniz, com quem José quadrinizou a "Revolta de Canudos".
O "Vigor Mortis" acima é um álbum de terror, com mais outros artistas, desdobramento do trabalho da cia. de teatro do mesmo nome. E dá-lhe assassinatos, tortura, mutilações, perversões e bizarrices.
(parêntentesis: ainda não descobri porque pessoas simpáticas, otimistas e fofinhas, quando vão fazer HQ mais autoral e adulta, sempre enveredam pela trilha mais obscura. As obras parecem dizer que no mundo só existe o Mal ou o Vazio, e os personagens ou são psicopatas, ou doentios, ou decadentes, a felicidade é inatingível... mas seus autores não parecem ver o mundo assim. É só um jogo - será sem consequências?
O Mutarelli, vá lá, tem uma biografia complicada; mas não é um ou outro, toda HQ de vanguarda é assim! É engraçado; é como se a necessidade de não ser comercial ou pasteurizado, só encontrasse inspiração no submundo e em gente violenta, demoníaca, vazia, decadente ou completamente perdida. No "Cachalote", Rafa, um mestre da fluência narrativa - seus quadrinhos realmente levam o leitor a viver o seu mundo desenhado - os personagens, todos, são seres humanos muito abaixo dos padrões de quem cria as HQs. A maioria dos que conheço pessoalmente são gente boa, inofensiva, otimista... não encontrei nenhum Rimbaud, que traficava armas no continente africano... fecho parêntesis)
Mas como disse José Aguiar - que além de bonzinho é vegetariano - "não faz quadrinhos quem não for otimista".
(adendo: preciso admitir, contudo, que fiquei realmente curioso em conhecer a história do zumbi apaixonado e do epilético que acorda no necrotério).
(adendo 2: o desenho do José Aguiar é muito sólido, aprendi muito vendo sua pasta com arte-finais e desenhadas com lapíseira).
Agora na produção potiguar, temos "Titanocracia" e "O Evangelho segundo o Sangue", histórias de Marcos Guerra, ilustradas respectivamente por Zoroleo Queiroz e Leander Moura.
De novo: mundo feio, sombrio, vazio, e sangue, sangue... socorro! quero vida! :)
E quadrinhistas jovens, simpáticos e querendo fazer da HQ um meio de vida e felicidade. Vá entender.
(já expliquei no texto acima, pessoal, é implicância minha, não liguem; vocês estão em boa (?) companhia: Mutarelli, Marcatti, Grampá...)
(adendo #2: já li muito Edgard Alan Poe, e todas as traduções de "O Corvo". É realmente um universo fascinante... mas não é o único).
A artista Cristal Cavalcante faz esses bonequinhos bacanas de pano. Action figures ótimos para se levar em viagem de avião.
"Luz nas Trevas / Autor em Crise" é de Joseniz Moura e vai na mesma vereda perturbada, mas menos gótico, e mais humorado ou sarcástico, mais pop - parece um clown surrealista...
E chegamos no regional: cangaceiros e cordel, cordel-cordel de Kyldemir Dantas e cordel em HQ, de Beto Potiguara (""Carcará - cabra pió num há"). Acima, "Labareda" de Luiz Elson, de quem falaremos mais adiante.
Na semana anterior, de Nova Olinda, CE, fomos visitar Exu, PE, terra de Luiz Gonzaga. E perto de Nova Olinda, Assaré, terra do poeta Patativa. Gonzagão, padre Cícero e Patativa do Assaré, três gigantes da cultura nordestina, são de três lugares muito próximos da divisa de Ceará com Pernambuco.
É muito interessante ver uma "cultura completa" - um conjunto de obras e tendências que, nota-se, tem uma espécie de "unidade orgânica" muito forte: quando você vê cordel + xilogravura + arte em couro + forró + religiosidade nordestina + culinária sertaneja + vegetação agreste + fenômeno do cangaço + coronelismo + ... - é perceptível que essas coisas, juntas, formam um universo, que tem seus valores e seu design.
Não digo com isto que uma sociedade deva se estagnar e apenas reproduzir esse modelo, para satistação nostálgica dos turistas urbanos dos grandes centros... Não, é preciso reconhecer que tanto o jegue quanto a motocicleta são instrumentos para rsolver problemas da vida, e se hoje o jegue foi substituído pela moto (no Cariri vê-se muito, mulheres dirigindo moto, com filho no colo, velhinho atrás, e bornal dos dois lados...), não é pela preservação da cultura que o sertanejo vai voltar a andar de jegue...
Não obstante, a cultura sertaneja forma um patrimônio muito coeso de artes e tradições, que é tanto rico como frágil. É bom e essencial que alguns se dediquem a preservá-la, justamente porque a sociedade por si mesma não preserva, e troca por novas formas culturais que, embora possuam força para se impor, podem não oferecer a mesma qualidade (um exemplo disso é a cultura pop urbana, essencialmente desagregadora e "feia", uma cultura baseada na fealdade, na poluição visual e na sujeira).
Minha admiração pela cultura regional brasileira veio das leituras de Monteiro Lobato, e dos livros ilustrados por José Lanzelotti (um dos quais trazia contos coletados por Câmara Cascudo).
Fiquei agradavelmente surpreso com a revista "Maturi", projeto de seis revistas desenvolvido pelo GrupeHQ. Está no número 5 (A "Maturi" original foi uma revista underground criada em 1976 por Aucides Sales).
Ela foi mudando progressivamente a linha editorial: começou mais fantástica, com temática livre, depois adotou o lema "quadrinhos potiguares" e fixou-se nos temas histórico e regional. Pode ter ficção (entenda-se "científica" ou surreal), mas sempre com referência à história e cultura do RN.
Um dos editores da "Maturi", Márcio Coelho, acima, foi nosso cicerone (de José Aguiar, de mim e Ana) na orla de Natal. Tem estilo elástico, vai do cômico ao realista com facilidade.
É meu "parente gráfico", nota-se que temos influências e interesses parecidos.
Gilvan Lira (na foto, veio prestigiar minha oficina) fez os quadros acima e também colorizou a HQ de cangaço na imagem anterior. Tem uma HQ dele na Maturi #03 cujo estilo lembra Mozart Couto, em que exibe habilidade e segurança no desenho e na finalização.
Ivan Cabral, também da "Maturi", é mais do meu planeta ainda, já que era chargista do Diário de Natal.
Este outro da "Maturi" merece um comentário à parte. Luiz Elson, além de grande entusiasta dos motivos regionais, fez este livro para ensino de desenho que me pareceu muito bom.
Batizou de "método cacimba" e propõe ensinar qualquer um desenhar, a partir de formas simples.
O diferencial é que leva os alunos a prestar atenção nos objetos do dia a dia, próximos e existentes, a arquitetura local, etc.
De fato, até certo ponto, qualquer um pode desenvolver o desenho de observação (e as pessoas param muito antes disso, creio que que devido ao preconceito contra o desenho realista como coisa ultrapassada...). Ainda vou postar neste blog, o imperador Pedro II era um desenhista amador muito esforçado, treinado pelo pintor Felix Taunay, e vivia rascunhando nas suas viagens.
Há, porém, um degrau que, creio eu, só ultrapassa quem possui talento genuino e inato. Esta é a parte misteriosa da arte. Não é todo mundo que tem, que consegue desenhar não um conjunto de linhas, mas um "personagem", um objeto que parece ter peso, um ambiente com rofundidade etc.
Luiz Elson tem isso, fez caricaturas ótimas em minha oficina (não devido a mim, é coisa dele).
Outros regionais e históricos: "A História do Rio Grande do Norte" e "Tupis e Brobós" (Aucides Sales, Luiz Elson, Carlos Alberto, Emanoel Amaral, Gilvan Lira).
E ainda na História, "Anchietinha", com desenhos da ilustradora paraibana Luyse Costa, para uma publicação de São Paulo. O traço de Luyse lembra aqueles franceses, Sempé, delicado e lúdico.
Também estou desenvolvendo um Anchieta, que levará bastante tempo.
Acima, o presentaço que ganhei (ou troquei, por um Santô) do Geraldo Borges, de Fortaleza, essa paginona do Batman que ele desenhou em 15 minutos. Do lado, seu trabalho na Consequences da DC.
Gosto muito de ver a precisão desses desenhistas de super-herói, no traço, no domínio do desenho anatômico, da perspectiva, da clareza narrativa. Há quadrinhos dessa espécie mais poluídos, não é o caso.
Quem se apega ao nacionalismo anti-americanista deixa de apreciar essa arte robusta. Tanto os super-heróis como o mangá são escolas sólidas, em que ainda se estuda o desenho realista-expressionista, arte que exige muita dedicação para ser aprendida - o que fazer, se as faculdades de artes decretaram que o realismo é superado e kitsch?
Bem, a estética super-heróica é kitsch mesmo, como Michelângelo e seus deuses retorcidos como o Tarzan de Burne Hogarth também era. São uma exaltação do corpo humano, e se prestam a um certo tipo de narrativa heróica.
Eu gosto muito de ver a "carpintaria" dessas páginas finalizadas, a nanquim, ou como é mais comum ver no Brasil, a lápis ou lapiseira (Geraldo usa grafite 05 no rough e 03 na arte-final). Tenho muito prazer e vontade de desenhar quando vejo esse "desejo de acertar" - do qual a arte mais livre abriu mão.
E aí vai a produção poética e quadrinhística da Milena, grande figura, artista e jornalista de grande talento, grande valor. Obrigado, Milena!
Depois de tantos estímulos, volto a SP morrendo de vontade de desenhar, de voltar à produção do "Barbas"; mas dia 25/10) viajo novamente, para o festival de BD de Amadora, Portugal.
Pedro II vai continuar esperando, mas está representado, lá no festival português.
Veremos o que nos espera na terra do D.Pedro IV.
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